Baile funk ‘raiz’ é liberado em Niterói
13:43“Falam que os bailes funk estão proibidos na comunidade, que são eventos não autorizados, que vai ter repressão, mas qual é o modo certo de fazer, dentro da lei?”. A questão de William Barros, de 37 anos, porteiro e morador do Morro do Palácio, no Ingá, é a mesma de outros 30 grupos que há um ano tentavam, às vezes sem sucesso, legalizar festas ao som de soul music, charme e funk das antigas nas comunidades de Niterói.
Para garantir que o evento ocorra sem problemas com as autoridades, é preciso garantir aval do Corpo de Bombeiros, Polícia Civil, Conselho Tutelar e assegurar ainda a entrada da Polícia Militar, que enfrenta uma recepção pouco ‘amigável’ por parte de grupos criminosos que atuam em determinadas localidades da cidade.
“Falou em funk, já é discriminado. Falou que vai ser na comunidade? Suas chances já diminuem”, afirmou William. Sem regularização, segundo o grupo, os bailes estavam inviáveis. Uma incursão policial pôs abaixo um baile feito para arrecadação de alimentos aos desabrigados das chuvas de novembro de 2018 no Morro do Preventório, em Charitas, na Zona Sul.
Os organizadores lembram que o evento estava concentrado na praça central da favela quando, por volta das 19h, duas viaturas da Polícia Militar entraram na comunidade. Dois disparos ao alto foram ouvidos nas redondezas e uma multidão de quase mil pessoas precisou correr na dispersão.
A estratégia após o incidente foi unificar a demanda: o grupo formou a Associação Cultural dos Bailes das Antigas em janeiro de 2019 e, até setembro, o movimento já havia conquistado espaço na agenda cultural de Niterói com a promulgação da Lei Municipal nº 3421/2019, de autoria da vereadora Verônica Lima (PT).
Funk família
A legislação assegura a realização do evento com apoio da Fundação de Artes de Niterói (FAN), mas com uma série de restrições. As festas devem encerrar até 23h, não é permitida a venda de bebidas em garrafa de vidro e é proibido soltar fogos de artifício. Os funks não podem ter músicas com teor pornográfico ou homofóbico, de apologia ao crime, à violência e às drogas.
Outro ponto chave para a liberação, não é permitida a circulação de pessoas armadas no evento ou tráfico de drogas nas redondezas. Os eventos legalizados sob o guarda-chuva da associação ganharam assim uma roupagem ‘família’, com início pela tarde, pula-pula para a criançada e arrecadação de alimentos para a comunidade.
A cada mês, quando alguma comunidade consegue promover o baile, as caravanas vem de toda a região. “Eu não aceito um centavo do tráfico, nem que seja pra instalar um brinquedo porque não posso ter vinculação nenhuma, e porque se eu aceitar vou estar dando liberdade para passarem na frente da minha família de fuzil no meio do baile”, desabafa um dos organizadores, que preferiu não se identificar.
Sem apologia
A desvinculação do tráfico priorizada na organização se repete na pista. Os grupos buscam prestar um tributo aos bailes funk que embalaram a juventude da periferia na década de 90.
Eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca
Parte dos organizadores curtiam as festas nos antigos clubes de Niterói, como a Vila Olímpia, que funcionava no terreno que hoje abriga o Caminho Niemeyer e onde aconteceu o baile de comemoração da promulgação da lei.
“Naquela época íamos aos bailes curtir Bob Rum, MC Marcinho, Claudinho e Buchecha. Depois da década de 90, quando eu frequentava, os bailes foram tomados pelas disputas de ‘corredor’, que eram cordas dividindo as galeras, e às vezes escalava para a violência. Queremos resgatar o funk desse tempo em que as letras retratavam a realidade das comunidades, um pedido por paz e pelo fim do racismo”, lembra Viviane Ramos, 41 anos, que atua como professora da rede municipal de Niterói e organiza bailes na comunidade do Sapê, em Pendotiba.
Os funks ‘proibidões’, do subgênero com origem no Rap das Armas imortalizado pelos MCs Júnior e Leonardo em 1995, estão banidos das festas. A sensualidade das letras do funk ostentação paulista ou o 150BPM, subgênero com beat acelerado que estourou no país a partir do baile da Gaiola, no complexo da Penha, também não tem espaço nas festas.
“Com a lei, estamos atravessando melhor a burocracia. Os grupos estão buscando organizar os bailes nos perímetros das comunidades para facilitar o acesso das viaturas e as autoridades estão começando a entender o movimento”, afirmou o eletrotécnico Fernando Falk, de 45 anos, que preside a associação cultural.
Reféns do tráfico
Ainda que regularizado, os bailes estão à mercê da política interna das comunidades. Era meio-dia de um sábado de novembro quando os organizadores começaram os testes de quatro caixas de som no campo esportivo de uma comunidade de Santa Rosa. Aos poucos, os vendedores ambulantes se instalavam no terreno. O grupo esperava receber naquele dia cerca de duas mil pessoas para o baile das antigas.
Era só mais um Silva / Que a estrela não brilha / Ele era funkeiro / Mas era pai de família
Rap do Silva, de Bob Rum
Depois de uma hora regulando o som, uma amiga do grupo atravessou o terreno aflita, com o celular na mão. “Estão acionando a polícia!”, avisou. Em grupos pelas redes sociais, moradores de prédios de alto padrão de Santa Rosa e Vital Brazil haviam fotografado a quadra do alto. “Atenção PM, a bandidagem está começando mais um baile infernal até a madrugada”, alertavam as postagens.
Um dos organizadores, que não quis se identificar, agarrou a pasta com os avais do baile e aguardou a viatura. Os policiais conferiram a documentação e liberaram a festa. Porém, pouco depois, o grupo recebeu a notícia de que a mãe do chefe do morro havia morrido por complicações de saúde. O tráfico revogou o aval e mandou desmontar o aparato de som.
“Foram 16 mil reais de prejuízo naquele dia. Na próxima vamos ter que dobrar o investimento e levar a festa para fora da comunidade mesmo”, afirmou.
Créditos: Eduarda Hillebrandt - Plantão em foco
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