Bonde da Tigrona
16:07Aos 40 anos, Deize Tigrona volta aos palcos, faz turnê na Europa e fala abertamente sobre depressão, racismo e o funk 150 BPM
Recém-chegada de uma turnê por oito países europeus, a funkeira veterana carioca Deize Tigrona se apresenta nesta terça-feira (3) em São Paulo, no WME Awards, ao lado das MCs Rebecca e Pocah. É o primeiro prêmio totalmente dedicado às mulheres da música brasileira, que será transmitido ao vivo pelo canal TNT, às 20h30.
Deize, hoje com 40 anos, assiste de camarote à polêmica gerada por Anitta ao afirmar-se, a uma rádio espanhola, pioneira em abrir espaço para as mulheres no funk brasileiro. Anitta em seguida se retratou, e Deize, diplomática, só faz lembrar que a colega mais nova costuma cantar sua “Eu Esculacho”, de 1998, quando faz medleys de funk em apresentações.
Para ir à Europa, Deize tirou licença não-remunerada de um ano das funções de gari hospitalar na Conlurb, no Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar depois de uma depressão que truncou sua carreira musical. Ela leva a vida numa montanha-russa de altos e baixos, e anuncia um novo CD para breve, que será antecipado pelo lançamento do single “Vagabundo”. Em um papo com a Trip, Deize fala sobre o começo na música aos 17 anos, os altos e baixos, violência no Rio, o funk 150 BPM, Rennan da Penha, Anitta, Ludmilla e mais.
Trip. Como estão as coisas, Deize?
Deize Tigrona. Está tudo bem. Fui em outubro pra Europa, fizemos, em um mês, os tradicionais: Alemanha, Espanha, Portugal, Bélgica, Inglaterra, França, Holanda... Estamos pra lançar a música “Vagabundo”. Na verdade, temos 12 ou 13 músicas prontas, estamos esperando as correrias se resolverem.
Como é voltar no funk atual, com essas músicas aceleradas? Um tempo atrás me perguntaram o que eu ia fazer, já que o funk ia acabar. Falei que o funk não ia acabar, que as letras iam ser as mesmas e só ia mudar o beat. E foi o que aconteceu. O funk de hoje, pra mim, é o mesmo. Estou vendo um giro capital imenso, de que participei lá atrás para hoje estar aqui. Só quero fazer parte do capital também. O Rennan da Penha é um DJ que foi muito criticado porque o 150 BPM tem uma batida mais acelerada. Vendo o funk acelerado desse jeito, pensaram que fosse rave. E não, na verdade, é uma atualização de beat. Isso abriu espaço pra muita gente – o próprio Rennan da Penha, da Vila Cruzeiro, que produzia Anitta, Livinho... Um pessoal que conseguiu um capital tremendo no funk. Esse lance de o Rennan ter sido preso é um fato histórico de que a coisa está boa, está indo bem. O funk é uma porta aberta.
Mas ele ser preso não é um sinal negativo? É um sinal negativo, mas ele saiu de lá como herói.
Hoje, há uma polêmica sobre quem são as mulheres pioneiras no funk, Temos a Deize desde quando mesmo? Desde 1997. Eu escrevia poesias, querendo fazer algo romântico, querendo desabafar. De repente saiu uma rima, falei: vou cantar. Queria cantar rap melody, era época de Claudinho & Buchecha, MC Marcinho & MC Cacau, Cidinho & Doca. Eu trabalhava no Alto Leblon como empregada doméstica, falava pro porteiro e pra faxineira que um dia ia gravar um CD. Eles falavam “ih, quem é você? Isso é muito caro”. Até que um dia o DJ Duda, na quadra do Coroado, anunciou que iria gravar e tocar quem tivesse alguma coisa. Fui lá e gravei “Hilda Furacão”, uma letra que falava sobre Hilda Furacão, “vocês vão ter que me engolir”. Não existia um Bonde do Fervo, a gente chegava na praça e dizia “tenho um fervo pra contar”, tipo uma fofoca. Tinha as meninas das casinhas do outro lado, que cismaram que existia um bonde e um apê falando delas. Então, fizeram o Bonde da Bad Girl e foram pro Coroado. E aí a gente começou, fazendo rixa uma pra outra. Eu tinha feito “Eu Esculacho”, (canta) “não adianta, de qualquer jeito eu esculacho”. “Injeção” eu escrevi em 2002. “Sadomasoquista” foi em 1999 – e todas essas, pra mim, continuam tão atuais... E elas faziam letras, tipo “A, E, I, O, U/ o Bonde da Bad Girl só curte hotel da zona sul”. Eu fiz: “Diz curtir/ motel com hidromassagem/ tirar onda pra elas/ é viver de sacanagem/ os gatinho até gosta/ mas tu sabe como é/ se eles pagam motel/ elas faz o que eles quer/ de quatro, de lado, na tcheca e na boquinha/ depois vem pra favela/ toda aberta e assadinha” (risos). Com essa música, o baile parou, ficou todo mundo mudo. Desci, falei: caralho, vou embora. E tentei sair. Duda me alcançou e disse: “Não vai embora, não, vamos gravar essa”. Fui pra trás das caixas de som. Na época não tinha estúdio, a gente gravava atrás do paredão. Era disquete, tenho eles até hoje.
Você tinha que conciliar o funk com uma vida normal de trabalhadora? É, mas, mesmo eu cantando, o funk não era uma coisa que estava na minha rotina quando virou capital, quando o pessoal que tinha bonde começou a sair dali pra fazer show. Eu não ia, porque não conhecia outras favelas, outros lugares. Não tinha ninguém que chamasse. No decorrer da vida, a gente vai vendo coisas. Fiz muitos shows, depois descobri que a música “Injeção” foi sampleada, de uma forma que foi chata.
Essa era a versão da M.I.A.? É. Fui perguntar, o cara me ofereceu pra gravar um CD e falou que eu não tenho direito a esse sampler da M.I.A., porque ela só pegou o sampler, não foi a letra. [Os produtores] Disseram que o cara tinha falado que eu tinha virado cristã e não cantava mais. Fiz o Tim Festival com a M.I.A., estava sem noção nenhuma naquele dia. Fiquei de 11h até a hora do show, não tinha o que fazer, fui trançar o cabelo da dançarina dela. A M.I.A. estava do lado, eu tenho essa foto. Depois, fomos tocar na Europa, uma tour de dois meses. Foi produtivo, e cansativo. Menstruei duas vezes em cada mês.
Como você se sentia no palco lá? Acho que é aquela fala mesmo de antes, eu invisível cantando pra alguém que não sabia se estava entendendo (risos). Mas foi show. Quando voltei da Europa, o produtor dizia: “Tem um show em Porto Alegre pra você fazer”. Eu dizia: “Eu não tô bem”. Não fui. Me convidaram pro Canadá, não consegui visto, não fui. Na turnê, não consegui ir. Bloqueei tudo no MySpace, Orkut, não queria saber de nada. Fui procurar psicólogo, psiquiatra, só dormia na cama e no sofá, o tempo todo dormindo. Eu falava: não estou me sentindo bem, minhas pernas estão leves, minha cabeça está tendo uma fumaça. O médico falava: ela está com depressão. Foi ficando tão intenso que tive que assimilar e acreditar que era depressão.
Passado todo esse tempo você entendeu o que era que estava acontecendo? Depressão. Só depois eu fui assimilando as coisas. Sou a mais velha de nove irmãos. Minha mãe é alcoólatra, meu pai só conheci aos 30 anos. De menor, eu apanhava muito, fugia de casa, dormia na rua, dentro do ônibus. Sempre ajudei meus irmãos. Com 12 anos, quando comecei a trabalhar, mobiliei o apartamento da minha mãe – comprei geladeira, televisão, videocassete, coisas que eles não tinham. Depois, eu disse: pelo amor de Deus, não quero tomar remédio. Parei de tomar, bloqueei tudo. Parei, fiquei sem grana, voltei a trabalhar. Trabalhei de copeira, de empregada doméstica, em faxina. Depois, fiz o concurso da Conlurb e passei. Ali fiquei.
É outro lugar onde dizem que as pessoas são invisíveis… Sim, sim. A Conlurb é assim, se você está de fora, é difícil você olhar pra cara do gari. Ninguém olha pra cara do gari. Estou falando isso porque eu também não olhava. Lá dentro, você vê o barril que é. Tem que lutar o dia a dia. Você ganha bem, mas tem que enfrentar a porra do sistema. Fui gari de rua quando entrei. Depois, fui transferida pra trabalhar em hospital. O gari de rua também se torna gari hospitalar, de roupa azul. É foda, ali os pacientes, enfermeiros e médicos te reconhecem. Hospital é diferente. Agora, consegui a licença não remunerada, de um ano. Depois disso, não sei o que vou fazer.
Por que você pediu a licença? Pra voltar pra minha vida artística. É uma coisa que está no sangue. Posso ser invisível pras pessoas, mas eu gosto de fazer isso, de cantar, de compor, dessa vida de estar com as pessoas. Ver hoje em dia Ludmilla e Anitta, porra, está vindo de uma onda que fui eu, lá atrás, com outras mulheres, que comecei fazendo funk.
Essa nova geração chegou mais preparada do que vocês eram? É, já chegou na janela. A gente teve que ficar em pé. Hoje em dia, moro na Cidade de Deus, quero muito ter dinheiro pra sair de lá. Há dois anos eu não pensava em sair, mas não está dando. A violência ficou pior. Eu vejo mais violência do governo e da prefeitura, tão bizarro, nas comunidades do que do próprio morador, ou até mesmo do movimento.
Anitta é funk? Anitta? Ah, pra quem lembra de funk de antigamente, de Claudinho & Buchecha, MC Andinho, o pessoal lá de trás, não. Pra mim, não é funk. Ela fez funk quando gravou pela primeira vez com a Furacão, que foi em cima de tamborzão, “eu vou ficar/ eu vou trair/ você merece mais do que me fez sofrer”. Isso pra mim era funk, mas os de hoje, não. Funk é quando ela canta o medley de putaria no Chá da Anitta. Isso eu adoro. Quando canta funk, ela canta até meu “Esculacho”. Essa fala que ela fez, eu não tinha visto. Ela fala ali que só tinha homem e que então ela decidiu fazer uma parada e, hoje em dia, tem mulheres no funk. Creio eu que ou ela não sabia o que estava falando, ou ela queria acordar a mulherada, ou era um recado pra uma outra artista que se sente funkeira hoje em dia.
E Ludmilla, é funk pra você? Ah, foi quando ela vez “Não Olha pro Lado”, “Não encosta no meu baseado”. Só esses dois. Nem “Liquidificador” eu acho funk. É outra coisa. É uma coisa que também é viável, porque abre portas. Muita gente olha, diz “a funkeira Ludmilla”, outros falam que não é, que ela está cantando com pagode, com sertanejo. Isso abre portas. O ruim só é quando discrimina o próximo ou, então, quem veio antes.
De tudo que você viveu, o que aprendeu sobre racismo? Nossa. Quando eu não estava bem, só falava que eu me via como se não tivesse problema em relação a racismo. Depois, você vai trabalhando, voltando à ativa e lembrando lá de trás... Eu fui acusada de roubo numa casa em que trabalhava. Como empregada doméstica, é elevador de empregado, se não funciona você sobe de escada. Aprendi que a luta é imensa, gigantesca. Naquela época não sei se eu tinha vergonha de falar, não sei se é porque eu estava nessa deprê. Mas é cruel e doloroso, porque você que vê de fora nota que eu estou sofrendo, mas eu não. Você passa a entender com o tempo. Esse governo de hoje está fazendo muita gente acordar. As pessoas querem curtir a vida, não querem vegetar em igreja.
Créditos: Pedro Alexandre Sanches - TRIP
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