Baile de favela
15:00
Kelly é dez anos mais nova que
minha mãe, Kátia, e enquanto aos 25 minha mãe estava casada, minha tia desde os
15 circulava nos bailes da cidade. Chegava a ficar uma semana sumida, fazia
minha avó arrancar os cabelos, depois ligava pra minha mãe, se desculpava, dizia
estar bem e que apareceria em breve. Quando aparecia, contava histórias épicas
de bailes funk, de garotos e meninas, de roupas da Cyclone, de andanças de trem
e ônibus. Eu, pequena e atenta aos detalhes, certa de que repetiria cada
aventura quando crescesse.
Um pouco mais crescida, quando
íamos visitá-la, eu me agarrava a um caderno que minha tia Kelly possuía. Nas
páginas, dezenas de letras de funk dos MCs famosos na época, versos enormes que
ela ouvia na rádio e transcrevia. Kelly me ensinou a gostar de funk, mas, para
o bem da minha mãe, eu cresci minimamente ajuizada.
Percebo que, desde o caderno da
minha tia, existia um claro desejo no funk de dizer de onde veio. Cantar os
bailes, as favelas, os clubes. Ostentar seu território, mesmo que ele seja o
mais pobre da região dos mais pobres.
Quando ouvi “Baile de favela” nas
primeiras vezes — o clipe tem mais de 90 milhões de visualizações, e umas 117
são minhas —, me lembrei das vezes em que ouvia Racionais MCs e cantava a Zona
Leste de São Paulo como se fosse minha. Onde mais eu ouviria o nome das favelas
de Eliza Maria, as Casinhas, o Hebron, a Marcone, a São Rafael? MC João passa
por Roberto Carlos — “ela veio quente, hoje eu tô fervendo” — e, nos segundos
finais do clipe, canta-se o refrão a capela, me deixando sempre arrepiada. O funk
é urna máquina de produzir hinos, parecido com a música gospel, e cantar “Baile
de favela” é tão gostoso quanto cantar “eu só quero é ser feliz”.
Em 2009, a Alerj aprovou a lei
que transformou o funk em patrimônio cultural, mas nem por isso ele se tornou
menos proibido. O projeto das
UPPs, que tentou trazer mais
segurança para a cidade, elegeu o ritmo como o vilão. E mesmo com dois editais
da Secretaria Estadual de Cultura premiando criações artísticas diretamente
ligadas ao Funk, ele ainda é tratado como caso de policia. Projetos que
ganharam os ditos editais, mesmo premiados pelo estado, precisaram negociar com
a polícia para acontecer em territórios populares.
Ë Importante deixar claro que
vivo o funk como ouvinte, consumidora e fã. Não produzo, não vivo as tretas do
dia a dia, não sei de um bando de coisas. Mas sei de uma: o funk sempre se
reinventa quando a gente acha que nada mais pode acontecer. A mais recente
reinvenção é a volta dos bailes de favela. No Rio, tenho a honra de estar por
perto (perto mesmo!), a uns 300 metros: o baile da Nova Holanda é o maior e o
melhor baile dessa cidade.
É decisivo contar que a favela da
Nova Holanda se formou nos anos 1960, a partir do contexto das remoções de
outras favelas. Originalmente foi criada para ser um Centro de Habitação
Provisório, os favelados removidos da Zona Sul aprenderiam hábitos de higiene,
novas formas de relacionamento social e convivência comunitária (pasmem!). A
disposição para a luta por direitos e a formação de instituições e sujeitos dispostos
a militar por uma outra perspectiva de favela vem desde essa época. Viver na
Nova Holanda não é para fracos.
Num território em que cada
centímetro é disputado, uma comunidade conseguir reunir jovens de toda a cidade
é um mérito. Jovens lindos, corpos pretos dançantes, não para uma plateia, mas
para eles mesmos. Eu sempre fico arrepiada.
Só mesmo a experiência empírica
neste caso faz entender. Então, usufrua do meu “quase manual” de baile de
favela. Afinal, de que me adiantaria escrever essa coluna se não fosse para
colocar o baile da Nova Holanda nas páginas da Cultura?
. Esteja preparado: o baile
acontece todos os sábados! Portanto, tire um dia para ouvir MC TH, MC Rodsone,
MC Priscila.
. Sobre a chegada: a Nova Holanda
fica na borda da Avenida Brasil, passarela 9, Rua Teixeira Ribeiro. Na entrada,
não sorria! Faça cara de quem vem toda semana.
. O tarde é sempre cedo: quanto
mais tarde, mais “embrazado’
. Dê um rolé: não fique só na
entrada, porque o baile ocupa a rua toda. Vá até o fim da rua por dentro do
baile (uns 600 metros). E, na dúvida, entre no trenzinho.
. Fique o máximo de tempo em
frente ao paredão de som: baile que é baile tem grave batendo no peito e
vibrando o corpo.
. Esqueça seu olhar antropológico
e seu dedo acusador em casa.
. Respeita as minas: não importa
o tamanho do short, da saia ou do vestido, nunca a toque! Se ela te quiser,
você vai saber.
. Como em qualquer lugar com
muita gente, proteja seus pertences. É um baile, você não precisa levar nada
além de suas chaves, seu celular e dinheiro.
. Não tire fotos. Não faça selfie.
. Por volta das 2h da manhã, não
se surpreenda ao ouvir falar de Jesus. Há grupos de evangelismo que distribuem
impressos e fazem orações. Por mais de 15 minutos não se ouve funk nas caixas,
somente os testemunhos dos homens de Deus que não estão ali para “acabar com o
seu divertimento” como eles mesmos deixam claro.
Porque até Jesus vai ao Baile da
Nova Holanda.
Crédito: Ana
Paula Lisboa – Segundo Caderno -2016
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