A velha guarda do funk está de volta ao batidão
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Depois de período no ostracismo, MCs cariocas que fizeram sucesso nos anos 90 são requisitados para tocar até em festa de casamento, preparam livro e comemoram a ‘segunda chance’
RIO - Demonstrações de camaradagem, reminiscências, abraços, risos, fofocas, piadas, vozes que vão subindo de volume à medida que o papo ganha desenvoltura. Um encontro da velha guarda do funk não tem nada de muito diferente do que se esperaria da sua contrapartida sambística. Os artistas contam de quando os primeiros cabelos brancos apareceram, da primeira vez em que foram chamados de “moço” ou de quando aquele garoto magrelinho, novo talento do funk, teve que se render à força da experiência (“esse tio aí é siniiiistro!”). Não raro, eles tiram da cartola da memória um ou outro rap que se julgava perdido — e quase sempre perdem a hora cantando os seus clássicos, em coro.
O que há de particular nessa velha guarda — um time elástico de MCs que há alguns anos vêm voltando a participar de bailes funk após um período de ostracismo coletivo — está nas idades. Reunidos pelo GLOBO numa tarde no Circo Voador (onde são estrelas da festa Eu Amo Baile Funk, que completa uma década de uma existência regular e bem-sucedida), eles faziam a contabilidade — e, somando tudo, ainda fica muito longe de mil.
Sob o olhar do veterano (49 anos) DJ Grandmaster Raphael, um dos artífices do fenômeno da velha guarda, esses MCs da primeira leva do funk carioca, do começo dos anos 1990, organizam a escadinha etária. Que vai, lá do alto, de Bob Rum (do “Rap do Silva”, 44), D’Eddy (do “Rap do Pirão”, 43) e os irmãos Júnior (40) e Leonardo (38 — eles são a dupla do “Rap das armas” e do “Endereço dos bailes”), a Neném (37, do “Rap da cabeça”) e Amaro (da dupla Suel e Amaro, com meros 36). Eles aceitam, de bom grado, a alcunha de velha guarda por sentirem nela o respeito que não tiveram nos tempos de bonança. Mas Mateus Aragão, produtor e idealizador da Eu Amo Baile Funk, conta que o batismo desse grupo de artistas se deu, na verdade, em função de uma estratégia.
— A gente ia fazer um show desses MCs da antiga com o Monobloco e uma rádio, que não tocava funk, não quis promover o evento. Apresentamos eles então como uma velha guarda, o que a emissora ou não entendeu ou pelo menos achou simpático, porque aí ela apoiou — diverte-se ele. — A velha guarda do funk é o diferencial da nossa festa, eles são os artistas principais. O MC Magalhães (do “Rap do trabalhador”, aquele do “César Maia / quebrou a firma”), que a gente trouxe de volta à cena, vem aqui, canta essa sua única música e tira umas 400 fotos para o Facebook. O nosso baile tem esse sentido nostálgico, de resgaste de sentimentos.
— A nossa geração é como a seleção brasileira de 1982. Que foi excepcional, mas que não recebeu o valor adequado porque não ganhou a Copa. Estamos tendo a nossa segunda chance agora — admite, sem falsa modéstia, o falante Bob Rum (que em outros tempos, como funcionário da extinta Telerj, atendia por Moisés Osmar da Silva). — Quando o funk fica sem opção, chama os clássicos que a gente segura. A gente vai, limpa a área e leva todo mundo junto.
Mesmo relativamente jovens, os MCs da velha guarda garantem que a caminhada até aqui foi longa.
— Na minha época, se eu quisesse ser alguma coisa, as opções eram tentar virar jogador de futebol ou então estudar. O funk abriu uma nova vertente — recorda-se Edimar Pedro Santana, o D’Eddy, autor de um dos primeiros sucessos do funk carioca, o “Rap do Pirão”, que lá no começo dos 1990 pedia o fim da violência nos bailes nas comunidades de Mutuapira e Boavista, em São Gonçalo.
— O D’Eddy foi a pedra fundamental para todo mundo — explica o MC Leonardo. — Quando ele apareceu com aquele grito lá (“Ô, alô Pirão! / Alô, alô, Boavistão!”), aquilo bateu lá na Rocinha, e eu ainda estava ouvindo pagode. Aí, eu entrei no baile, no (clube) Emoções, onde estava tendo um concurso de rap. Me inscrevi e ganhei o nome de MC Cabeludo, porque tinha cabelo comprido.
— A gente não tinha conhecimento musical nenhum. Todos faziam rap como se jogava futebol: botar a bola no pé e meter gol — acrescenta D’Eddy. — O negócio era escrever o rap e sair logo cantando. A gente não tinha a maldade dessa questão chamada melodia.
Mas as melodias estavam por aí, era só pegar, como conta Leonardo, que arranca gargalhadas dos outros MCs ao confessar que pegou emprestado o jingle do Baú da Felicidade (quem não se lembra da musiquinha do Atrasildo Atrasado?) para colar à letra de “Endereço dos bailes”.
— Eu e Junior, a gente ouvia Jackson do Pandeiro quando era moleque. A métrica da gente era a do coco. Na batida do Volt Mix (base do rap americano usada pelos DJs do funk carioca), qualquer melodia cabia, de Mozart ao “Parabéns pra você”. Tudo virava funk — analisa o MC. — Hoje, no baile funk, o moleque dança frevo em cima da melodia de samba no tambor da macumba.
Assim como Junior e Leonardo, Bob Rum também não era do funk. Cantava música brasileira nas rodinhas de violao da igreja e achava que o Volt Mix era uma banda de rock. Mas aí…
— O Duda do Borel (da dupla William & Duda), meu vizinho em Santa Cruz, tinha explodido com o “Rap do Borel”. Eu participava de festivais de MPB e ia aos bailes esporadicamente. Ele dizia que eu tinha que fazer um rap. Aí, tive a ideia do “Rap do Silva” (“era só mais um Silva / que a estrela não brilha/ ele era funkeiro / mas era pai de família”). Quis contar um pouco da minha história, do pai de família que gosta do seu lazer, seja futebol ou o baile funk, e que, por causa de alguma circunstância errada, morria — conta Bob. — Essa música mexeu com o emocional de muita gente. Eu entrei de férias na Telerj e, na outra semana, estava contratado pela (equipe de som) Furacão 2000, tinha carro zero, mídia lá em casa… Eu não entendia nada. Aprendi a gostar de funk.
Outro pioneiro do funk carioca foi Neném (Anderson da Silva Ângelo), artista egresso da Rocinha, que começou aos 16 anos de idade com o MC Mascote, do Morro do Vidigal — eles foram a primeira dupla do funk carioca, e fizeram sucesso com o “Rap da Rocinha”. Depois da separação, em 1994, Neném gravou o “Rap da cabeça” e, numa linha mais romântica, “Eu te quero”.
— Ganhei muito dinheiro. Posso dizer que fui rico e não sabia — diz ele, que desde o começo da carreira vive exclusivamente da música e hoje é morador da Baixada Fluminense e pai de três filhos. — A juventude é fogo, a gente só pensa em gastar e gastar. É aquilo: quando a cabeça não pensa, o corpo padece.
História parecida viveu Amaro Fabiano Gomes Lopes, o Amaro, que montou aos 14 anos, com Suel (Rafael Teófilo Carvalho), seu amigo de rua no Catete, uma das duplas mais bem-sucedidas do segmento romântico do funk. No embalo do melody, as músicas “Perdi você’’, “Pra sempre você”, “Você me deixou” e seu maior sucesso, “Pequena garota”, transformaram Suel e Amaro em astros.
— Numa hora, não tinha R$ 2,50 pra subir num ônibus, e logo depois estava com cinco mil no bolso, no RioSul, comprando roupa pra caramba. O Suel andava de Havaianas e queria ter 20 pares de tênis — lembra Amaro, que teve sua parceria com o amigo interrompida em 2002, quando ele foi assassinado em uma briga de rua.
O ocaso desses MCs veio ainda no fim dos anos 1990, com o fenômeno dos bondes (grupos com MCs e dançarinos), com as montagens (funks com pouca ou nenhuma letra) e com a opção pela temática do erotismo. Naqueles novos tempos, a velha guarda passou a soar ingênua.
— A putaria na nossa época era uma montagem chamada “Toma-to-toma”. Era o absurdo da época — conta Leonardo, que hoje é uma figura politicamente ativa, à frente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk). — Não reclamo, porque essa onda segurou o funk até aqui, até hoje. Queria eu que o funk tivesse um assunto legal nas suas letras, que falasse sobre as questões sociais, do romantismo. Mas a putaria é uma coisa viva. Eu me assustei quando o Bonde do Tigrão apareceu com o “vou passar cerol na mão, vou jogar você no chão, vou te dar muita pressão, martela, martela...” Que tesão é esse? Hoje, só com um telefonema, o Naldo faz a mulher gozar!
— As rádios achavam que o que era antigo não prestava. Era como se o Pelé não tivesse existido. Deu um certo desgosto — conta Bob Rum.
Cada um foi se virando como pôde. Junior, Leonardo e D’Eddy, por exemplo, foram dirigir táxis.
— Às vezes aparecia um show por R$ 300, R$ 400. Eu parava de trabalhar mais cedo, para ter disposição de cantar. O Junior perdia a noite, e no outro dia nenhum dos dois conseguia rodar. A vontade de cantar, a teimosia, a alegria não nos deixaram parar de cantar — recorda-se Leonardo.
Amaro, em situação econômica mais precária, passou pelo dissabor de ter a polícia batendo na porta de sua casa certa vez, às seis da manhã, porque estava com a pensão alimentícia atrasada.
— Um dos PMs veio e disse: “Cara, tu não é o Suel e Amaro?”. E o outro: “Não tem esse negócio de Suel e Amaro, não, pode algemar!” — conta o MC, que acabou sendo logo solto.
Depois da Eu Amo Baile Funk, os MCs da velha guarda voltaram a se apresentar com regularidade, exceto por D’Eddy, que divide os palcos com a administração da Lek Produções, que empresaria o grupo Os Lelek’s, um dos grandes sucessos do funk recente com o “Passinho do volante”.
— Antigamente, para o MC beber uma garrafa d’água era uma dificuldade. Hoje, os novos chegam e pedem logo um combo! — brinca D’Eddy, que sempre dá um jeito de encaixar uma apresentação sua e de outros MCs das antigas nas noites dos MCs do momento. — É a hora em que neguinho canta, dança e fecha o olhinho. Até quem não era nem nascido quando a música foi gravada.
Hoje, prestes a se formar em Administração e a lançar “Era só mais um Silva, o livro” (e ainda vem por aí um curta-metragem inspirado no “Rap do Silva”), Bob Rum é um artista dos mais requisitados — não só para os bailes da velha guarda, como para shows em festas de casamento.
— Foi um mercado em que entrei por acaso, há uns cinco anos. Me associei a um bufê e eles descobriram que a minha música dava para tocar nas festas. Hoje, só para ter uma noção, já tenho casamento fechado até 2015! — orgulha-se.
— Você sente que esses caras da velha guarda só continuam no negócio porque são apaixonados pelo funk — acredita o DJ Grandmaster Raphael, que produziu suas músicas nos anos 1990 e, nos 2000, ajudou a promover o renascimento do funk das antigas em festas na extinta boate Bunker 94, em Copacabana. — Essa rapaziada foi tirada do mercado muito precocemente, eles são de uma época mais romântica do funk. O domínio de palco deles é impressionante. Não é por acaso que estão voltando. Hoje, todas as festas querem MCs da velha guarda. Há espaço até para alguns que não ficaram tão conhecidos, como Nélio e Espiga (do “Rap da lembrança”), Roni e Sargento (“Rap Fazenda dos Mineiros”), Tiê e Playboy (“Rap da mudança”)…
De festa em festa, hoje o MC Neném põe comida na mesa de casa e vive com dignidade. Mas ele quer mais do que só um revival do funk das antigas:
— É legal saber que se eu cantar uma música minha, que tem 20 anos, o pessoal vem junto, e canta alto. Mas é claro que eu quero fazer músicas novas, músicas atuais, entrar no clima do que está rolando. Quem vive de nome é museu. Atualmente, estou preparando o meu primeiro CD, aquele que fiquei devendo ao meu público esse tempo todo. Pelo menos cinco das músicas antigas, eu tenho que colocar de qualquer jeito. Mas vai ter muita novidade também.
Créditos: Silvio Essinger - O Globo - 2014
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1 COMENTÁRIOS
Aí sim agora dará vontade de ouvir rádio e ir aos bailes novamente 🙌🙏
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