A ordem do Caos
19:38Certa vez me perguntaram se eu tinha orgulho de morar na favela e eu disse que não. Como posso ter orgulho de ter nascido em um lugar sem condições mínimas para um ser humano viver? Porém, tenho orgulho de ser quem sou nascido neste lugar. Tenho orgulho de ter um monte de amigos decentes, pais de família, trabalhadores, também nascidos e criados comigo lá na favela. Gente que numa guerra cotidiana e invisível contra um sistema social perverso conseguiu preservar sua integridade, organizar suas vidas e resistir à desumanização.
No entanto, essa é só uma parte da história. As marcas das perdas de muitos amigos, alguns quando eu ainda era criança, me entristecem muito.
Quando tive minha carteira de trabalho assinada pela primeira vez, eu tinha apenas 14 anos. Era em uma loja de roupa em Ipanema, e as pessoas olhavam e falavam:
- Que criança bonitinha, já trabalhando!
Mas na primeira oportunidade perguntavam:
- Não tem nenhum rádio de carro barato lá onde você mora não garoto?
E eu respondia:
- Não sei do que você está falando não.
Os mesmos clientes que gostavam de ver um menino pobre ordeiramente trabalhando, ao invés de viver a sua infância e estudar (tudo bem, já que não era o filho deles e, além disso, “pobre quando tá ocioso pode virar ladrão”), como consumidores queriam se beneficiar da informalidade e do processo de criminalização que a juventude pobre sofre em nossa sociedade. Assim, os mesmos que clamam pela ordem e pela repressão, são parceiros do caos, protegidos na tranqüilidade dos condomínios, dos carros blindados e das fronteiras da cidade onde o preço da vida humana é mais valorizado. Mas, como combater os caos, sem se aprofundar nas suas causas?
A maneira pela qual os nossos governantes tratam a segurança pública do nosso estado é totalmente covarde, pois só combater o tráfico varejista nas favelas com polícia e depois ir embora, deixando um rastro de morte e destruição, traz apenas revolta a todos que necessitam de tantas outras coisas para viver. Não tendo nenhum tipo de serviço público que funcione realmente para a comunidade, esses jovens se tornam presas fáceis para qualquer tipo de crime. Mas, especialmente o tráfico é para eles um grande negócio. Vou dizer porque.
Conheço um monte de jovens e crianças na Rocinha, favela onde eu nasci, que têm entre 12 e 19 anos e que vão entrar pro tráfico. Com os meus 32 anos de vida dentro de favela, posso dizer que vão, com toda certeza. Conversei com um desses jovens esses dias.
O nome dele é Tiago. Nasceu e foi criado na mesma rua que eu. Com uma família problemática, ele cresceu vendo a mãe dele, viciada em álcool e cocaína, entrando e saindo de presídios pra ver os tios que cumpriam penas por vários tipos de crimes. Sei mais da história da família dele do que ele próprio, pois sou uns 13 anos mais velho, e conheci a sua avó, os seus tios e tias. O avô e o pai eu até hoje não sei quem são.
Vou relatar o nosso papo de maneira que todos possam entender, pois se eu escrever exatamente da maneira que ele se comunica vai ficar praticamente incompreensível para os não iniciados nas diversas línguas das periferias. Era madrugada e estávamos na via Ápia, principal avenida da Rocinha. Nas minhas costas e de frente pra Tiago, um CIEP, que a galera da minha geração chama de Brizolão:
- Fala Tiago, beleza?
- Beleza MC.
- O que anda fazendo, rapá?
- Nada… de vez em quando aparece uns trabalhos.
- Que tipo de trabalho?
- Ah! uns tijolos pra carregar, uns sacos de cimento, sempre aparece.
Qualquer um que olhe para ele vai ver que ele não vai ter essa disposição por muito tempo.
Então perguntei, apontando pro Brizolão:
- Você terminou seus estudos, Tiago?
Ele fazendo pressão com a boca cheia de fumaça do baseado, balançou a cabeça fazendo sinal de negativo.
- Mas se quiser mudar vai ter que terminar, rapá.
- Mudar o quê? – respondeu ele.
- Mudar né? Parar de beber, de fumar maconha, de cheirar pó e pernoitar. Meter as caras nos estudos pra ver se aparece uns trampos melhores pra você.
- Bem que eu queria, mas não é fácil não MC.
- Não é fácil por que rapaz?
- Pô MC, fala sério! Falar é fácil, parar de me drogar até posso, qualquer hora dessa eu paro, mas voltar a estudar pra procurar trabalho fora da favela, isso eu já descartei da minha vida.
- Que isso cara ficou doido?
- Doido o quê MC! Olha bem pra mim, me faltam quase todos os dentes da frente, sou preto, num sei falar direito e quando eu vou lá pro asfalto as pessoas fogem de mim. Se eu pergunto a hora, o camarada se assusta. Quando sento no ônibus quem está sentado do meu lado se levanta. Como é que tu quer que eu ature isso? Eu não, prefiro ficar aqui, onde todo mundo me conhece, conhece toda minha família, e tem um montão aqui igual a mim. Não vou sair daqui pra ser esculachado lá embaixo.
Não pude deixar de reconhecer sua razão, ainda que não concordasse com suas idéias.
- Valeu o papo Tiago, mesmo com pensamentos diferentes, valeu!
- Valeu MC, boa sorte!.
- Pra você também.
Saí dali pensando o que eu poderia fazer pra afastar aquele garoto daquela situação. E cheguei à conclusão de que, sozinho, eu não posso fazer nada, mesmo sabendo que ele é uma presa fácil pra esse ciclo vicioso chamado tráfico varejista de drogas.
Não existe, no estado do Rio de Janeiro, um lugar que eu possa pedir para ele procurar ajuda e que lá ele vai ser ouvido e tratado com seriedade, respeito e atenção, infelizmente.
No início dos anos 1980, quando as desigualdades sociais brutais começaram a mostrar seu rosto mais violento nas favelas da cidade e se iniciou a explosão da violência urbana em níveis inéditos, o estado tinha que ter ouvido caso a caso, a história de cada criança com condições de vida precárias, acompanhá-las de perto, mas não o fez. Naquele momento, ainda havia a experiência dos CIEPs, uma proposta de educação integral capaz de fazer frente a essa realidade.
Hoje somente uma força tarefa da sociedade pode mudar isso aí. É isso mesmo, força tarefa, voluntariados, como tem nas Olimpíadas, na Copa do Mundo e nos Jogos Panamericanos, pois temos um enxame de crianças nessa situação dentro das favelas.. Uma força tarefa não para reprimir, exterminar e fazer das favelas uma espécie de gueto, a serviço de uma suposta ordem urbana que serve somente para engordar os bolsos de empresários, alimentar a especulação imobiliária e atender aos interesses daqueles que querem os votos de uma classe média que vive com medo. Mas sim um compromisso do conjunto da sociedade com investimento em educação, saúde, lazer, moradia, saneamento. Investimento, aliás, muito mais barato e eficaz do que armas, blindados e soldados.
Ou as classes alta e média entram nas favelas pra conhecer essa realidade e ver o que pode ser feito com trabalho e, sobretudo, democracia, participação popular, ou seus anseios de ordem vão resultar em mais caos. Somente dinheiro, não resolve o problema, posturas do tipo “eu já faço muito, pago meus impostos”. Na verdade, isso é muito pouco. A mesma pessoa que pergunta a um conhecido favelado se não tem um rádio de carro baratinho pra vender por lá, não tem coragem de subir na favela e ver de perto como pode fazer alguma coisa para que diminua o furto na cidade, atingindo de fato as causas que geram a violência urbana.
É preciso que todos saibam o tamanho do problema, pois a combinação de desigualdade social e busca da manutenção da ordem, através da repressão e do extermínio da juventude pobre das favelas, só tem nos levado à beira do CAOS.
MC Leonardo - Revista Caros Amigos Julho/2008
Créditos Foto: João Rocha Lima
Acesse: http://mcjunioreleonardo.wordpress.com
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