Lacraia: Politizando C.U.
19:53 Lacraia, Drica Lopes e Serginho
“Serginho e Lacraia” é uma dupla que mais do que qualquer outra no funk faz piada com as regras de gênero. Em suas performances muito mais do que reforçar preconceitos, essa dupla ironiza a chamada “matriz heterossexual”, quando, por exemplo, Serginho, ao lado de Lacraia enuncia os seguintes versos de uma música chamada “Machão”:
Diz que isso ta errado, quando vê fica bolado
Ele diz pra todo mundo que não gosta de viado
Mas quando chega a noite ele sai pra procurar
Um alguém bem diferente pra de lado ele trocar
E tem mil fantasias que ele quer realizar
Quer tapa na cara, que beijo na boca
O machão virou uma louca.
A letra dessa música, que fala de um homem que “à surdina da noite” tem relação com um outro homem que é considerado viado, me faz lembrar a fala de uma intelectual transgênero que assisti num Congresso Nacional de Gênero. Ela dizia que, na América Latina, tanto a relação entre pessoas do mesmo sexo, quanto os papéis “ativo” e “passivo” numa relação sexual são determinantes da homossexualidade dos sujeitos. Portanto, para questionarmos a “matriz heterossexual”, seria necessário atravessar as fronteiras da naturalização e historicizar todas as partes dos nossos corpos, principalmente, aquelas que são tão definitivas na construção de nossas identidades. Em outras palavras, com “um papo mais reto” numa sociedade onde “ativo/passivo” funciona como limite da “heteronormatividade” é urgente historicizar e politizar o C.U.!
Nesse sentido, a música “Machão” é uma crítica aos comportamentos, que contribui para a mencionada politização. Aliás, em entrevista que realizei com os dois, Serginho faz o seguinte comentário: “Eu e Marquinho (referindo-se a Lacraia) somos uma coisa só. A gente canta o ato sexual. Mas mexeu com Marquinho, mexeu comigo. Quando canto essa música sempre falo o seguinte: meu amigo, o c.u. é dele e você tem de respeitar. Ele faz com o c.u. dele o que ele quiser. Tem muita machão que dá o c.u. aí de madrugada.” Assim, Serginho, ao cantar e denunciar comportamentos sexuais, mostra como são frágeis as fronteiras que definem de um lado quem é o “machão” e de outro lado quem é a Lacraia.
Outro aspecto interessante na performance dessa dupla do funk é a forma pela qual os significados raciais são ironizados juntamente com os significados sexuais. Nesse mesma entrevista, Marquinho fala da importância de Lacraia não só para o funk, pois ela haveria influenciado a performance de muitos bondes, como também para a mídia brasileira. Ela diz o seguinte: “A Lacraia é uma figura de respeito, que eu e Serginho criamos juntos. Antes, os garotos dos bondes diziam assim: “vai viado escroto, vai”. Agora, respeitam a minha arte e dizem “vai Lacraia, vai”. Eu era cabeleireiro, maquiador, drag-quen, mas agora sou a Lacraia. Eu sei que ainda tem muita discriminação, mas eu considero a Lacraia como um marco na televisão brasileira: um viado, preto e pobre que brincando, mostra um rebolado mais bonito que de muita mulher; um viado que passou a fazer sucesso na TV, antes que qualquer homossexual aparecesse em novela. Aliás o que não pode na novela, pode no nosso palco: o beijo na boca".
É interessante notar como Lacraia, não só na sua auto-definição (inspirada talvez em Jorge Lafond) mostra o caráter ambíguo da dicotomia “homem/mulher” já que ela defini-se como uma “quase mulher”. Uma vez que a matriz heterossexual não é algo natural, é possível escapar dela, tornando-se mais ou menos mulher, mais ou menos homem, ou até um pouco dos dois. Além disso, sua fala e performance evidenciam a não-naturalidade dos gêneros, pois Lacraia é uma invenção (de respeito e de fama) de Marquinhos e Serginho. No entanto, tudo isso é feito em meio a muita brincadeira. A paródia é algo muito presente nas letras e nas performances dessa dupla. Aqui, vale destacar uma versão chamada “Luana” que a dupla fez da música de MC Sapão chamada Tranquilão.
Luana (Serginho e Lacraia)
Que gatinha é essa
Que quer ganhar uma canção?
É claro, Caetano disse não.
Ela é modelo, atriz de televisão.
É claro, Caetano disse não.
Vem pra cá dançar,
Mas me diz seu nome?
Lacraia - Meu nome é Luana Piovani
Eu to tranquilão,
To numa boa,
To curtindo o batidão
Não fiz a música,
Só porque não sei seu nome
Lacraia - Eu já disse é Luana Piovani
Desce, desce, desce....
Na versão de Serginho a gatinha tem nome e é Luana Piovani (que sabemos que é uma artista da Rede Globo, uma modelo branca, magra, loura dos olhos azuis). Mas quem reivindica a identidade de Luana Piovani, parodicamente, é o corpo negro de Lacraia. Quando a dupla encena essa música, Lacraia – que está sempre detalhadamente bem vestida e maquiada – parece embaralhar os significados de gênero e raça, causando em seu público uma mistura de desconforto, curiosidade e fascínio. Eu não estou exagerando, mas a primeira vez que vi a dupla apresentar tal música, numa boate de classe média do centro do Rio de janeiro, achei essa performance uma “ironia revolucionária”! São os padrões heterossexuais de beleza e sexualidade brancas que Lacraia cita para invertê-los, à medida que reivindica tais padrões para si. Nessa ironia, feita deliberadamente de excessos – “uma quese mulher” que vira muito mulher na incorporação de Luana Piovani – Lacraia mostra como as fronteiras que separam os gêneros estão sempre muito perto e podem ser visitadas e continuamente transgredidas.
Diz que isso ta errado, quando vê fica bolado
Ele diz pra todo mundo que não gosta de viado
Mas quando chega a noite ele sai pra procurar
Um alguém bem diferente pra de lado ele trocar
E tem mil fantasias que ele quer realizar
Quer tapa na cara, que beijo na boca
O machão virou uma louca.
A letra dessa música, que fala de um homem que “à surdina da noite” tem relação com um outro homem que é considerado viado, me faz lembrar a fala de uma intelectual transgênero que assisti num Congresso Nacional de Gênero. Ela dizia que, na América Latina, tanto a relação entre pessoas do mesmo sexo, quanto os papéis “ativo” e “passivo” numa relação sexual são determinantes da homossexualidade dos sujeitos. Portanto, para questionarmos a “matriz heterossexual”, seria necessário atravessar as fronteiras da naturalização e historicizar todas as partes dos nossos corpos, principalmente, aquelas que são tão definitivas na construção de nossas identidades. Em outras palavras, com “um papo mais reto” numa sociedade onde “ativo/passivo” funciona como limite da “heteronormatividade” é urgente historicizar e politizar o C.U.!
Nesse sentido, a música “Machão” é uma crítica aos comportamentos, que contribui para a mencionada politização. Aliás, em entrevista que realizei com os dois, Serginho faz o seguinte comentário: “Eu e Marquinho (referindo-se a Lacraia) somos uma coisa só. A gente canta o ato sexual. Mas mexeu com Marquinho, mexeu comigo. Quando canto essa música sempre falo o seguinte: meu amigo, o c.u. é dele e você tem de respeitar. Ele faz com o c.u. dele o que ele quiser. Tem muita machão que dá o c.u. aí de madrugada.” Assim, Serginho, ao cantar e denunciar comportamentos sexuais, mostra como são frágeis as fronteiras que definem de um lado quem é o “machão” e de outro lado quem é a Lacraia.
Outro aspecto interessante na performance dessa dupla do funk é a forma pela qual os significados raciais são ironizados juntamente com os significados sexuais. Nesse mesma entrevista, Marquinho fala da importância de Lacraia não só para o funk, pois ela haveria influenciado a performance de muitos bondes, como também para a mídia brasileira. Ela diz o seguinte: “A Lacraia é uma figura de respeito, que eu e Serginho criamos juntos. Antes, os garotos dos bondes diziam assim: “vai viado escroto, vai”. Agora, respeitam a minha arte e dizem “vai Lacraia, vai”. Eu era cabeleireiro, maquiador, drag-quen, mas agora sou a Lacraia. Eu sei que ainda tem muita discriminação, mas eu considero a Lacraia como um marco na televisão brasileira: um viado, preto e pobre que brincando, mostra um rebolado mais bonito que de muita mulher; um viado que passou a fazer sucesso na TV, antes que qualquer homossexual aparecesse em novela. Aliás o que não pode na novela, pode no nosso palco: o beijo na boca".
É interessante notar como Lacraia, não só na sua auto-definição (inspirada talvez em Jorge Lafond) mostra o caráter ambíguo da dicotomia “homem/mulher” já que ela defini-se como uma “quase mulher”. Uma vez que a matriz heterossexual não é algo natural, é possível escapar dela, tornando-se mais ou menos mulher, mais ou menos homem, ou até um pouco dos dois. Além disso, sua fala e performance evidenciam a não-naturalidade dos gêneros, pois Lacraia é uma invenção (de respeito e de fama) de Marquinhos e Serginho. No entanto, tudo isso é feito em meio a muita brincadeira. A paródia é algo muito presente nas letras e nas performances dessa dupla. Aqui, vale destacar uma versão chamada “Luana” que a dupla fez da música de MC Sapão chamada Tranquilão.
Luana (Serginho e Lacraia)
Que gatinha é essa
Que quer ganhar uma canção?
É claro, Caetano disse não.
Ela é modelo, atriz de televisão.
É claro, Caetano disse não.
Vem pra cá dançar,
Mas me diz seu nome?
Lacraia - Meu nome é Luana Piovani
Eu to tranquilão,
To numa boa,
To curtindo o batidão
Não fiz a música,
Só porque não sei seu nome
Lacraia - Eu já disse é Luana Piovani
Desce, desce, desce....
Na versão de Serginho a gatinha tem nome e é Luana Piovani (que sabemos que é uma artista da Rede Globo, uma modelo branca, magra, loura dos olhos azuis). Mas quem reivindica a identidade de Luana Piovani, parodicamente, é o corpo negro de Lacraia. Quando a dupla encena essa música, Lacraia – que está sempre detalhadamente bem vestida e maquiada – parece embaralhar os significados de gênero e raça, causando em seu público uma mistura de desconforto, curiosidade e fascínio. Eu não estou exagerando, mas a primeira vez que vi a dupla apresentar tal música, numa boate de classe média do centro do Rio de janeiro, achei essa performance uma “ironia revolucionária”! São os padrões heterossexuais de beleza e sexualidade brancas que Lacraia cita para invertê-los, à medida que reivindica tais padrões para si. Nessa ironia, feita deliberadamente de excessos – “uma quese mulher” que vira muito mulher na incorporação de Luana Piovani – Lacraia mostra como as fronteiras que separam os gêneros estão sempre muito perto e podem ser visitadas e continuamente transgredidas.
Créditos - Texto e Foto: Adriana Carvalho Lopes (Drica Lopes)
0 COMENTÁRIOS