A Batida que não se ouve

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Pouco importa se você gosta ou não das músicas, o fato é que não se pode ignorar o impacto social e cultural causado pelo funk – o dos cariocas, que muitos chamam de pancadão. Independente do vai e vem na grande mídia, esse som tornou-se mais do que um simples gênero musical. Atravessou décadas e hoje é uma das principais forças de mobilização das comunidades pobres carentes no Rio de Janeiro (e em várias cidades brasileiras). O funk carioca tornou-se a voz do morro, muitas vezes gritada com fúria, para denunciar o descaso do Governo.

Tudo isso pode ser melhor compreendido no ótimo livro Batidão – uma história do funk, do jornalista carioca Silvio Essinger. Lançado este ano pela Editora Record, ele volta no tempo para falar de um tempo em que o funk tocado nos “bailes black” ainda era aquele que teve em James Brown seu maior representante. Na orelha do livro, o texto anuncia o que está por vir: “nenhum outro lugar do mundo levou a ordem de James Brown tão a sério quanto o Rio de Janeiro”.

Os anos 70 foram o marco zero desse “movimento” que sacudiu, literalmente, a terra do samba. Aquele funk norte-americano deu à luz uma penca de filhos, dos quais destacaram-se o hip-hop, o rap, a disco music, o electro e o miami bass. Este último construiu os alicerces do funk carioca como se conhece hoje – bem diferente daquele lá, consagrado por James Brown. A música mudou, mas o miami bass tropical não deixou de ser funk (e seus adeptos, funkeiros). O nome é herança dos antigos “bailes black”.

Em busca da batida ideal

Em 1982, Kevin Donovan, mais conhecido como Afrika Bambaataa, promoveu uma revolução com a música Planet Rock, um tapa de luva na cara de muita gente. Inspirado no grupo alemão Kraftwerk, ele compôs uma batida reta e muito grave, destacando o bumbo. Essa sonoridade era possível graças a uma bateria eletrônica: a TR-808, da Roland. O que havia de mais moderno na época.

Bambaataa incorporou uma linha de baixo gorda, dando mais peso à batida. O outro diferencial foi a inclusão da melodia densa e sombria de Trans-Europe Express, sampleada do mesmo Kraftwerk, que inspirou a batida. Com isso, deu-se o toque final que constituiu a estranha atmosfera espacial e futurista de Planet Rock.

Foi um salto na evolução musical batizado de electro, que influenciou não só o hip-hop, mas também toda a música eletrônica que começava a ser desenvolvida na América”, revela Silvio Essinger. Quando foi tocada pela primeira vez nos bailes do Rio de Janeiro, Planet Rock causou impacto imediato e devastador. Toda a base do funk carioca derivou daí. A partir de então, vários experimentos foram feitos em cima dos batidões de electro e miami bass. Elementos da música brasileira também foram misturados. O funk dividiu-se em diversos subgêneros, mas todos iam dar no mesmo lugar: os bailes.

A dura trajetória

Foi em 1989 que a coisa toda explodiu. Com um empurrãozinho do antropólogo Hermano Vianna, o DJ Marlboro, que na época começava a se consagrar, produziu o primeiro disco de MCs cariocas – o Funk Brasil. Para Marlboro, criar seus próprios ídolos era a única forma que o funk tinha para quebrar a barreira do subúrbio e estourar no Brasil inteiro. Foi tiro e queda, em todos os sentidos, positivos e negativos.

Desde então, o funk construiu uma história polêmica e controversa. Criou celebridades instantâneas: artistas de um sucesso só e outros que durariam mais tempo. Algumas carreiras terminariam de forma trágica. Foi o caso de Alexandre Enéas da Silva, o Goró, da dupla Márcio & Goró, que deu um tiro no próprio ouvido, diante do pai, e morreu na hora. “Ele não teria suportado voltar à vida de dureza, depois de já ter recebido cachês de R$ 2 mil e de ter lançado dois discos por grandes gravadoras”, conta o autor do livro.

O pancadão revolucionou a sociedade, apesar de todo seu minimalismo musical e pobreza poética - certamente, reflexo de um sistema educacional precário. O funk também serviu de pretexto para impulsionar carreiras políticas. Além disso, promoveu a violância, de um lado, e pregou a paz, de outro. Alguns bailes até chegaram a ser usados como canal pelo crime organizado. Foi investigando isso que o jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, tornou-se vítima do narcotráfico, após ser descoberto em um baile funk.

Batidão narra inúmeros fatos, todos muito curiosos e interessantes. Revela um lado que poucos conhecem. Silvio Essinger coletou depoimentos de quem fez a história do funk, aprofundou-se no tema, pesquisou muito. Reuniu matérias publicadas nos principais jornais do país e estudou as obras de outros autores, sobre temas afins – destaque para O mundo funk carioca, de Hermano Vianna.

Visto sem a máscara do preconceito, esse “movimento” revela a imagem de um Brasil que a elite não está acostumada a ver. Porém, é um país vivido pela grande maioria: uma terra pobre, precário e carente, vítima do descaso. Um país constituído por aqueles que, bem ou mal, conseguem se unir por meio dessa musicalidade e se expressar através dela. Queira ou não, é um dos movimentos sociais mais fortes desse país.

Para quem nunca gostou das músicas, não será Batidão que mudará isso. Afinal, gosto é gosto. Seja como for, quem sempre torceu o nariz para o funk carioca, pelo menos reconhecerá seu valor e impacto sócio-cultural.

Batidão – uma história do funk
Autor: Silvio Essinger
Editora Record
Lançado em 2005

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